sábado, 26 de setembro de 2009

Narração

Tudo estava tão silencioso. Os dois lado a lado no sotão, encarando as bolas de poeira que corriam com o vento que entrava por uma fresta à esquerda. Ele tentava dizer, ela tentava ouvir, nenhum obtendo sucesso. Ela gritava em sua própria cabeça:
- Acabe com o silêncio! Preciso ouvir sua voz.
Ele afrouxou a gravata em seu desespero contido, fitou o teto, voltou à poeira e finalmente chegou aos olhos dela. Olhos negros e suplicantes. Tentou, mas acabou por engolir as palavras, intensificando o silêncio.
Os dois pareciam aqueles personagens de animação do Tim Burton, crianças cabeçudas, magras, compridas, com olheiras e aparentemente com muito pó de arroz nos rostos expressivos. Ela de branco, ele de preto, no sotão sem cor.
Para a surpresa geral da nação e para animar a narração, ele se levantou de súbito e caminhou pesadamente até a janela, abrindo-a com certo esforço. Voltou-se para ela com a luz do luar na nuca, ela sorriu um meio sorriso e pôs-se de pé. Ela andava até ele e eu - até então, meramente narrador observador - queria muito saber o fim da história, mas tornei-me narrador personagem ao quebrar o silêncio do lugar, esbarrando numa garrafa empoeirada. O jovem de preto logo me localizou, e tirou-me de meu esconderijo perfeito, atrás de um velho baú. Mesmo sendo fraco, era muito maior que eu, o que me intimidou. Ele me ergueu pelo colarinho enquanto a garota levava as mãos à boca, em horror. E aí quando eu vi, não estava vendo mais nada.

domingo, 20 de setembro de 2009

Sem planos pra mostrar

Das tantas coisas que eu poderia listar que admiro em você, pequena, opto pelas menores. Gosto de quando você escorrega os dedos pelas cordas do violão procurando inspiração, sem chegar a tocar nota nenhuma, e de como você torce a boca e o nariz pra pensar. Ou de como você morre de vergonha ao derrubar calda de chocolate na blusa - coisa que sempre acontece - e do castanho avermelhado dos seus cabelos. E de você me mandar mensagens ao longo do dia, puramente por mandar, e de rir das piadas que eu conto.
Uma vez me falaram que adorar é mais forte que amar, porque o amor caiu na boca do povo, é subutilizado, agora a adoração é algo grande, adorar é algo que dá trabalho, que te faz correr atrás. Na dúvida, amo e adoro.
O tempo passa, o sol pinta a tarde e a gente nem vê, ou melhor, a gente vê tão rápido que não nota o tempo passando. É como se aqueles filmes, aqueles em quadros, aqueles mudos. Pra que trilha sonora quando nós somos a música?
Te espio enquanto você não me notar, te respiro até me cansar, te escrevo sem planejar te mostrar, te amo como aquele que ainda sabe amar. E sem notar eu me distraio, perco tempo, arranco folhas de caderno, jogo as idéias pro alto, enlouqueço sóbrio e carente, canto pro espelho embaçado, mas você me deixa contente só de existir, só de sorrir, só de ser.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Pelo lembrete, pela foto e pela postagem

Primeiramente:
Você o torce, espreme, pressiona, faz chantagem, mas quando as gotas de criatividade deixam de ser expelidas do seu cérebro é um sinal de que é hora de arranjar uma gravata, colocar aquele cd da Alanis Morrisette no volume máximo {e eu indico a música Crazy} e, quem sabe, começar a se dedicar à algo novo como aquele concurso público que deixaria seus pais orgulhosos, construir a casinha do cachorro que você planeja comprar ou, quem sabe, ler um dos vários livros que você arranja e não abre.

Segundamente:
Pra que planejar o futuro se este, efetivamente, nunca chega? Isso é algo que deveria ser tatuado na pele, o amanhã nunca chega, e o passado - quando passa - se esquece. Faça hoje pra não deixar pra amanhã, diga hoje o que você tem à dizer, seja quem você nasceu pra ser. Fica o lembrete para quem vos fala.

Terceiramente:

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O blog comeu meu post antigo, contente-se com um novo e sem empenho nenhum

Arrumou a jaqueta sobre os ombros e saiu, batendo a porta atrás de si. Ao alcançar dois terços do corredor, uma mulher precariamente enrolada num roupão de seda apareceu da porta previamente fechada pelo homem.
- É isso? É isso? - Ela gritou para as costas que se afastavam.
- É. - Ele respondeu sem ao menos se dar o trabalho de encara-la.
- Você aparece com toda a sua lábia, faz o que quer comigo e me larga assim? - Ela insistiu.
Ele parou no fim do corredor, já na porta do elevador, como quem escolhia bem as palavras. Virou-se lentamente para encara-la, ela enxugou os olhos rápida e indiscretamente.
- E o que mais você quer de mim? - Ele perguntou. - Não te dei o que você queria? Justo como você fez comigo.
- Você só pode estar brincando..
- Olha, Amanda..
- Miranda.
- É. Olha, se servir de consolo.. você não é a única, meu bem. - Ele sorriu. O mesmo sorriso que a conquistara na noite anterior. E sumiu atrás das portas do elevador.
Ele apertou o botão, passou as mãos nos cabelos, sorriu para a câmera que o observava e beijou o crucifixo que trazia no pescoço - única pertence dos pais que ele ainda não havia vendido.
- Mãe, Pai, prometo ser melhor com as mulheres.. numa outra vida, quem sabe.
Checou o relógio, ainda era cedo, sacou o celular no bolso, as chaves do conversível e saiu pela noite em busca de mais entretenimento.